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Jovem Cientista | “A gente 'empreteceu' a universidade”: aprovada em estágio nos EUA, biotecnologista nordestina estuda dor neuropática diabética no Butantan

Com suporte de programas sociais e constante incentivo da mãe, Gessica de Assis transformou sua realidade a partir dos estudos


Publicado em: 28/05/2025

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Marília Ruberti


Uma das memórias de infância de Gessica Sabrina de Assis Silva, 29, é dormir no chão de um bar ao lado do irmão. Era lá que a mãe dos dois trabalhava para sustentar a família sozinha, no interior da Bahia, após ter sobrevivido à violência doméstica. Até hoje, a jovem recorda a alegria nos olhos dela quando se formou como assistente social, embora tenha sido desencorajada por muitos. O mesmo aconteceu com a filha anos depois: Gessica escutava que deveria “se conformar” com sua realidade, mas, em vez disso, encontrou nos estudos uma forma de transformá-la. Com o incentivo da mãe, formou-se em Biotecnologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também fez mestrado, e hoje pesquisa dor neuropática de origem diabética no doutorado no Instituto Butantan.

Nada disso teria sido possível sem os programas de assistência estudantil. Durante os primeiros meses de faculdade, Gessica demorava três horas para chegar ao campus no centro de Salvador, e sempre precisava sair mais cedo da aula – ela estudava à noite e o último ônibus saía antes da aula terminar. Era inviável continuar naquele ritmo. No final do primeiro semestre, sua vida mudou: foi selecionada para o programa de assistência da universidade, que incluía residência estudantil, transporte entre os campus e alimentação. A moradia tinha 40 pessoas e ela dividia o quarto com quatro colegas. Para a jovem, era o “céu”, pois ficava ao lado da faculdade.

“Eu me considero filha dos programas sociais, porque entrei e permaneci na universidade por causa deles”
 

 

Ainda no início da graduação, Gessica decidiu se candidatar a uma bolsa de Iniciação Científica que surgira no Laboratório de Farmacologia e Terapêutica Experimental da UFBA, para estudar a dor causada pela neuropatia diabética (lesão nos nervos em pessoas com diabetes). Tudo ainda era muito novo para a caloura, mas aquela oportunidade lhe abriria portas no futuro, além de ser um importante auxílio financeiro. Para sua surpresa, a jovem foi selecionada para a vaga, e permaneceu no laboratório durante sete anos.

Sob orientação da pesquisadora Cristiane Flora Villarreal, sua grande mentora, Gessica investigou um potencial tratamento para neuropatia diabética, com o uso de células-tronco mesenquimais de medula óssea – células que têm capacidade de se renovar e que podem ajudar a modular outras células. O transplante das células-tronco nos modelos animais foi capaz de reduzir a sensibilidade à dor gerada pelo quadro de diabetes por até dois meses, período de avaliação do estudo.

 

Gessica e colegas durante a primeira semana da graduação (Arquivo pessoal)

 

Oficialmente cientista

No mesmo dia em que apresentou o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Biotecnologia, em 2018, Gessica soube que passou na prova do mestrado em Farmácia. Ela continuou sua pesquisa no Laboratório de Farmacologia e Terapêutica Experimental da UFBA, e descobriu que não eram especificamente as células-tronco que reduziam a dor, mas sim determinadas substâncias secretadas por elas – as vesículas extracelulares. Essas moléculas, responsáveis pela comunicação celular, carregam informações genéticas capazes de alterar a atividade de outras células. A hipótese é que essa modulação leva à liberação de fatores analgésicos, ajudando a controlar a dor.

A estudante finalizou o mestrado em 2021, durante o auge da pandemia de Covid-19. Como ia todos os dias à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde conduzia parte dos experimentos do projeto, ela precisava fazer testagem contra o SARS-CoV-2 duas vezes por semana para garantir que não havia se infectado. A exaustão do período a levou a dar uma pausa na vida acadêmica – após a conclusão do mestrado, trabalhou como representante comercial para uma empresa que vendia produtos de laboratório e começou a estudar para concursos públicos. Também realizou trabalho voluntário na plataforma de diagnósticos de Covid-19 da UFBA, que auxiliava no processamento de amostras de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). 
 


No fim daquele ano, porém, a pesquisa chamou Gessica de volta: a convite de uma professora, participou de um estudo de sequenciamento do SARS-CoV-2. A experiência reacendeu o desejo de fazer doutorado, e ela decidiu pesquisar oportunidades na área de dor. Esse ainda era o tema que mais chamava sua atenção, inclusive em um contexto pessoal: sua mãe sofre com fibromialgia, síndrome que aumenta a sensibilidade à dor, causando rigidez muscular e dor generalizada no corpo. Na busca pelo próximo passo da carreira acadêmica, a jovem encontrou o Laboratório de Dor e Sinalização do Instituto Butantan, onde conseguiu uma bolsa de doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

“A dor da minha mãe é a minha dor também. A pesquisa que nós fazemos hoje vai ajudar alguém no futuro – mas para chegar lá, precisamos trabalhar muito”

Em seu projeto de doutorado, orientada pela pesquisadora Vanessa Zambelli, ela tem buscado minimizar o uso de animais no estudo da dor. Para isso, ela tenta mimetizar um modelo de neuropatia diabética em modelo celular de neurônios sensitivos. “A ideia é tentar entender a doença para identificar possíveis mecanismos de tratamento, ao mesmo tempo em que diminuímos o uso de modelo animal para uma doença tão debilitante.”

 

A mãe da jovem é sua maior inspiração (Arquivo pessoal)

 

Pela estrada afora

Gessica chegou a São Paulo em 2022 sem conhecer nada nem ninguém, mas não se intimidou. Logo conquistou seu lugar no Butantan, fez amizades e foi se envolvendo em todas as atividades da equipe do laboratório – até nas noites livres de karaokê. Amante de MPB, está sempre com seu fone de ouvido e conhece a importância de se orgulhar das origens. Perto das bancadas, encontrou uma segunda casa. “Meus colegas sempre me envolvem nos trabalhos e eu gosto muito de participar de tudo. Dificilmente você não vai me ver dentro do laboratório – em 2023, eu estava aqui no dia 31 de dezembro”, conta.

Com família no interior do Piauí e no interior da Bahia, a jovem se habituou desde pequena a ficar migrando entre os dois estados, mas a mudança para São Paulo, com seus costumes e pessoas tão diferentes, foi desafiadora. O que ela não imaginava é que outras experiências lhe aguardavam Brasil afora. Em agosto de 2024, na reta final do doutorado, Gessica fez sua primeira viagem internacional com os colegas de laboratório para Amsterdã, na Holanda. O objetivo era apresentar sua pesquisa no 20º Congresso Mundial de Dor, o evento mais importante da área.

Pouco depois, em dezembro, embarcou em uma nova aventura: mudou-se para os Estados Unidos para atuar por um ano na Universidade do Alabama, em Birmingham, após ter sido selecionada para uma Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE) da FAPESP. Lá, ela terá a oportunidade de trabalhar com células 3D em modelo de organoide, técnica que permite estudar uma cultura celular em um ambiente tridimensional, que simula um ambiente mais próximo ao do corpo humano quando comparado ao cultivo 2D.

O processo da bolsa, que durou praticamente um ano, foi um dos mais difíceis que já precisou enfrentar. Isso porque, além de preparar toda a documentação, ela teve que fazer sua primeira entrevista em inglês sem nunca ter estudado o idioma no ensino público. “Eu conseguia ler, mas não sabia falar. Tive que sair do zero para um nível aceitável de inglês em apenas alguns meses fazendo aulas particulares”, diz Gessica. 

Na primeira entrevista com a universidade norte-americana, em julho de 2024, a estudante ficou muito nervosa e não conseguiu passar. Mas o “sim” finalmente veio em outubro, quando realizou uma segunda entrevista. A mãe, que mora no Piauí, estava em São Paulo visitando a filha, e presenciou o momento da conquista.

“Fiquei muito feliz, gritei, chorei, abracei minha mãe. De novo, estou indo com a cara e com a coragem. Não conheço o país, a língua, ninguém. Mas talvez dê certo”

 

 

Ocupando os espaços

O gosto por estudar e o espírito questionador sempre fizeram parte da vida de Gessica. Na escola, era comum encontrá-la sentada em algum cantinho nos intervalos das aulas, acompanhada de um livro. Já o interesse por ciência se deu, em parte, por inspiração do padrinho, professor de Biologia – e também por ser um universo cheio de possibilidades, mas que nem sempre esteve acessível para ela. “Nos primeiros anos na escola pública, eu raramente tinha aulas de ciências biológicas e, quando tinha, ficava muito empolgada”, conta.

No segundo ano do Ensino Médio, após ter tirado sucessivos 10 nas provas de biologia, matemática, física e química, Gessica recebeu um recado por escrito de dois professores, dizendo que ela deveria continuar se esforçando pois chegaria longe. Aquilo reverberou em sua mente quando, enfim, entrou na universidade. “Eu consegui. Eu realmente cheguei em algum lugar”, pensou ela.
Entrar na faculdade e se formar era algo totalmente fora do seu escopo. Aos poucos, no entanto, ela foi vendo colegas conquistando o tão sonhado espaço na vida acadêmica. Os programas sociais para inclusão de pessoas de baixa renda foram determinantes para a construção do futuro de Gessica e dos jovens de sua comunidade, democratizando o acesso à educação superior em uma realidade ainda muito desigual.

“A gente empreteceu a universidade. Tenho orgulho de todos os meus amigos, de ter caminhado de chinelo por aquela área nobre, um local que antes só pertencia à elite branca, para dizer: eu vou ocupar o meu espaço”